“Vó Esmeralda, minha avó amarela, viveu até os 91 e esperava seu primeiro tataraneto nascer”

Júlia Medeiros, escritora, atriz e dramaturga, sobre a avó Esmeralda. É autora de “A Avó Amarela” (ÔZé, 2018), vencedor do Prêmio Jabuti de melhor livro infantil de 2019, “Temporina” (ÔZé/Ponto de Partida, 2022) e “Zalém e Calunga” (ÔZé/Ponto de Partida, 2023)

“Estive com minha avó, pela última vez, numa segunda-feira. Ela balbuciou macarrão com frango, eu perguntei se ela ia fazer; eu não, ela disse, não faço mais nada. Mas alguém tem que matar o frango, eu tentei. Tem que matar, ela concordou, sem abrir os olhos. Mas se matar com dó não morre, né, vó? Tem nada disso! Não pode é pensar ruim. Tem que matar pensando bom. Teve frango no seu casamento, vó? Teve. E mais o quê que teve? Tudo comum. Teve festa? Tudo comum. Lembra que você brincava de piniquim com a gente, vó? Não. Você beliscava assim na pelinha da nossa mão e cada um beliscava na mão que estivesse por cima, lembra? Não. Assim, vó. Tá muito feia a minha mão, muita mancha. Tá nada, você tá muito linda. Todo mundo tá falando mesmo que eu tô bonita. Mas você tá muito linda mesmo. É, disseram que eu tô mesmo. Vó, posso falar pra Raquel e pra Carol que eu sou sua neta preferida? Você vai caçar confusão, minha filha. Ela crispou os olhos, sem abrir. Mas nem pra caçar confusão eu posso, vó? Vai caçar confusão, não, filha, eu amo vocês todos igual. Igual mesmo? Todos igual, vocês são tudo pra mim. Ô, vó, eu te amo muito, viu? Também. E o que você tá gostando de ver na televisão, vó? Nada. Uma brigaiada, muita briga, qualquer coisa eles briga; ela passou a mão na cabeça. Tá doendo a cabeça? Tudo dói, filha. Tá tudo ruim, tudo doendo. Faço um carinho entre os olhos; descansa, vó; a voz leve, dedo de leve; descansa. Ela me olha pela primeira vez e diz tchau: tchau, tchau. Ué, vó, tá me mandando ir embora? Você já vai embora, filha? Não vai ficar pro café? A enfermeira anuncia o fim da visita; vou ter que ir, vó. Fica pro café, filha. Eu volto, vó, prometo. Te amo muito, muito, muito. Também te amo. Descansa, tá, vó? No dia seguinte, fim da manhã, ela mandou chamar os filhos. Falou bobagem, abraçou, beijou e deu um último suspiro. Tudo comum. Vó Esmeralda, minha avó amarela, viveu até os 91 e esperava seu primeiro tataraneto nascer. Até uma semana antes de morrer, morou sozinha, cozinhou seu almoço, mandou no próprio dinheiro, tomou as decisões. Era doce, muito doce, e detestava flor. Com a mesma amorosidade que nos chamava pro café, dizia aqui, cês vão tudo à merda, viu, seus sem vergonha! Baita mulher forte. Tive avó até os 36, meus filhos tiveram bisa até uma terça-feira; obrigada, vó, obrigada, eu repetia pro corpo dela no caixão mesmo sabendo que ela não estava lá. A mão era a mesma que a gente usava pra brincar, fui lá e fiz piniquim na pelinha dela. Te amo, vozinha. Os olhos fechados, nenhum assunto. Foi embora sem complicação, que bênção, só posso agradecer. No Natal a gente não vai ganhar uma nota dobrada até sumir no aperto de mão. Não repara, viu? Dei pra todos igual. Ô, vó, não precisava, a gente ia dizer, todos igual, escondendo o dinheiro no bolso, na bolsa, no cós de alguma roupa. Tem que pensar bom, que bênção, só posso agradecer, eu repito chorando enquanto penso que dó, que dó, que dó.”





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